segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Tiana - A Princesa e o Sapo e suas reproduções dos estereótipos dos negros



Resumo: O presente artigo pretende tratar sobre os repetitivos estereótipos em relação aos negros, presentes na animação da Disney A Princesa e o Sapo (Ron Clements e John Musker, 2009).


Em 2009, a Disney lançou a animação “A Princesa e o Sapo” onde teria pela primeira vez uma princesa negra — pelo menos era o que se apostava na publicidade no filme. Mas o que aparece é uma rã como princesa, pois nos primeiros 30 minutos de filme ambos os mocinhos se animalizam, virando sapos, e só retornam a forma humana faltando 3 minutos para o final (e outros companheiros da jornada deles serão estereótipos negros, como explicarei aqui mais adiante).

O filme traz um conto de origem alemã dos irmãos Grimm, mas é fato que colorir um desenho de negro não basta para trazer a representatividade negra. Amailton Magno Azevedo e Sheila Alice Gomes da Silva propõem um questionamento importante para nossa análise no texto “Era Uma Vez…”: O Negro No Imaginário Encantado:

Príncipe Naveen e Tiana como sapos
“Como uma animação baseada num conto de origem alemã pode trazer ao público o universo de permanências e rupturas da Diáspora africana, especificamente, na América do norte? “ (AZEVEDO e SILVA, 2014)

A animação não explicita em momento algum as questões raciais: em apenas um trecho tem uma conotação de racismo por parte de dois personagens brancos, mas ainda assim é colocado como uma questão de classe social, que é quando a imobiliária não vai concretizar a venda do imóvel para Tiana, como se fosse por ela não ser experiente ou por ter outro interessado que cobriu a oferta, duas desculpas dadas, mas que não deixa óbvio ao expectador que a realidade é porque ela é negra.

A dicotomia aparente entre os personagens mocinhos e vilões vai para além das características psíquicas. No traço estético do desenho, é discrepante a diferença entre os personagens de origem afro. No mesmo texto citado acima, os autores evidenciam esse assunto de forma bem explicativa: “Tiana tem a pele negra, mas apresenta um fenótipo distante dos traços negroides comuns a população afrodescendente.” (AZEVEDO e SILVA, 2014).

Tiana

Tiana tem como chefe Buford, um cozinheiro que é negro, gordo, com um fenótipo com traços negróides, lábios avantajados, nariz largo, que explora o trabalho dela, a tratando mal, um apostador de corridas de cavalos que tem aparência desleixada, denotando uma desconfiança ao personagem. Nesta cena do restaurante aparecem amigos negros de Tiana que a convidam para sair, mas ela não sabe dançar, tem que trabalhar — esses amigos não serão convidados para o casamento da princesa, no restaurante dos sonhos da personagem podem entrar pessoas de todas as classes, mas no casamento só os brancos.

Ainda sobre Tiana, vale ressaltar que representa alguns esteriótipos citados no livro O negro brasileiro e o cinema de João Carlos Rodrigues, como o “negro de alma branca”, que “representa o negro que recebeu uma boa educação e através dela foi (ou quer ser) integrado na sociedade dominante” (RODRIGUES, 2011, p. 26), a “cozinheira de mão cheia” ou “Preta velha” (como a Tia Anastácia, do O Sitio do Pica-Pau Amarelo), que “tem qualidades e defeitos: se por um lado é simpática e bondosa, por outro continua basicamente ignorante e supersticiosa” (ibid., p. 24), e a “musa”, aquela que “não apela para o erotismo vulgar” mas, pelo contrário, “é pudica e respeitável” (ibid., p. 24).

O príncipe Naveen, da Maldônia, é outro que carrega a caricatura do malandro, como aborda o texto de Azevedo e Silva:
“(…)o príncipe Naveen, da Maldônia, que chega a cidade procurando um casamento com uma garota rica, a fim de sair da falência financeira que se encontra. É apresentado, diferentemente de todos os outros príncipes conhecidos dos contos de fadas produzidos pela Disney, com características mais próximas dos vilões, como: malandro, ganancioso, mulherengo e aproveitador. (…) Ele é negro, e numa inversão de valores, nunca antes pontuada em animações, tem o mordomo branco. Apesar de todas as cenas mostrarem relações raciais, entre negros e brancos, tranquilas e boa convivência, Naveen, negro, maltrata de maneira sarcástica o seu mordomo, branco. E assim como Tiana, tem suas características fenotípicas distanciadas dos traços negroides.“ (AZEVEDO e SILVA, 2014)

Naveen

No primeiro número musical da animação, “Lá em Nova Orleans,” há uma apresentação dos personagens e da cidade através do ponto de vista do príncipe que ainda não apareceu. Enquanto canta Tiana está correndo para o seu segundo emprego, servindo graciosamente as mesas, trabalhando, reforçando a subserviência do negro na sociedade.

Lá em Nova Orleans

Este número traz características de intensidade (o príncipe está feliz por estar na terra do jazz), energia (Tiana faz suas deliciosas tostadas) e abundância (quando o príncipe dança com o menino que vende jornal). Também há uma “glamourização” da pobreza, deturpação da imagem dos praticantes de vodu, religião afro-centrada:


O núcleo da maldade e/ou do vilão é composto pelo Dr. Facilier (denominado feiticeiro) ou Homem Sombra, praticante de Vodum, tradição religiosa teísta-animista baseada nos ancestrais, tem suas raízes primarias nas sociedades Ewe-Fon da África Ocidental (Benin). Apresentado com um caráter negativo, invejoso e ganancioso, tem sua primeira aparição na animação costurada a uma música que nos traz um olhar restrito e universalista sobre suas praticas de Vodum, como: “Tem magia boa e má”, trazendo na palavra má um close ao personagem, quando o mesmo jogava cartas para um senhor branco na cidade. Outra parte da musica, é: “Consiga o que quer e depois perca tudo…” classificando o Vodum uma prática mentirosa e enganadora. Numa outra cena Facilier promete almas aflitas as divindades do Vodum, sugestionando uma demonização da prática. Tiana (protagonista) refere-se ao Vodum como: “magia negra” numa conotação negativa. O filme, de modo geral, representa o Vodum sob as lentes disciplinares da ideologia hegemônica eurocêntrica que segundo Shohat e Stam (2006) traz a Europa numa perspectiva central no mundo do conhecimento, da cultura, entre outros.(AZEVEDO e SILVA, 2014)

Nos filmes que têm princesas da Disney somente duas encaram os serviços domésticos sorrindo e cantando com alegria: Tiana, de 2009, e Branca de Neve, de 1937 — padrão de mulher boa, recatada e do lar sendo reproduzido ainda hoje, ou reprodução da subserviência do negro?

“Estou quase lá”

O segundo número musical desta animação, “Estou quase lá”, explora o conceito da meritocracia, reafirma a necessidade de excelência que o negro deve atingir para conseguir ser aceito na sociedade. Sabendo-se que a maior parcela da população de Nova Orleans nos EUA é negra, como informa a jornalista Renata Saldanha em matéria para a Folha em 2015:
A população de Nova Orleans ainda é majoritariamente negra, mas os negros caíram de 67% dos habitantes, antes do Katrina, para 60% hoje. A renda das famílias negras é metade da renda das famílias brancas, e a classe média e alta negra da cidade encolheu. (SALDANHA, 2015)

A protagonista afirma na canção que a cidade faz as pessoas se “acomodarem”, como se negros fossem acomodados, preguiçosos, reproduzindo e deixando subentendido uma construção cultural racista, que vem desde o período da escravatura, até os dias de hoje. Outras problemáticas desse número são colocadas muito bem por Azevedo e Silva neste fragmento do texto:
“Quando Tiana finalmente consegue todo o dinheiro para dar entrada na compra do galpão que almeja, tem seu primeiro momento musical na animação, que será a materializado numa idealização do seu sucesso a frente do restaurante. Nesse sonho ela está usando um vestido de branco, modelo dos anos 20, com seus cabelos lisos num corte chanel; o que nos permite associar sucesso a embranquecimento. As roupas mudam, os traços mudam, quanto mais próximo do sucesso mais próxima da branquitude ela será apresentada pela animação, numa reafirmação dos valores eurocêntricos.” (AZEVEDO e SILVA, 2014)



O terceiro ato musical do filme, “Tenho amigos lá do outro lado”, continua afirmando uma visão deturpada do vodu: o Homem Sombra, que foi citado acima, está convencendo o servo e o príncipe a fazerem um acordo com ele com transparência, pois tem a audiência dos outros dois personagens, e energia, pois está extremamente exaltado por conseguir firmar o acordo.



O próximo número musical é “Quando formos humanos”, logo após os sapos conhecerem e convencerem um crocodilo, chamado Louis, a mostrar o caminho até Mama Odie (outro personagem que vamos falar mais para frente). Esse crocodilo quer ser humano para tocar jazz, outro típico estereótipo negro mencionado no livro de Rodrigues, o “crioulo doido”:

Louis
“Na Commedia dell’Arte, o Arlequim é um personagem endiabrado, que faz trapalhadas e confusões. Uma espécie de perverso polimorfo, princípio freudiano da sensualidade infantil sem direção. É parente do bobo da corte, que podia dizer impunemente aos reis e imperadores, de um modo gozado, as verdades interditas aos outros súditos. No picadeiro dos circos, transformou-se no palhaço colorido ou Excêntrico, de nariz vermelho e sapatos descomunais (em oposição ao palhaço branco ou Clown, aristocrático de chapéu de cone, originário do Pierrô). Nos vaudevilles, essas funções histriônicas foram transferidas para os criados. Para que no Brasil esse arquétipo fosse desempenhado por negros, foi apenas um pulo.” (RODRIGUES, 2011, p.42)

Quando formos humanos



Geralmente o crioulo doido tem uma dupla, que vai ser apresentado na cena seguinte: Ray é um vagalume apaixonado por uma estrela, outro crioulo doido, que vem com outro número de musical, “Vamos levar vocês”, ambos trazem características de comunidade onde todos cantam e se divertem. Transparência e abundância também estão presentes nestes números que são um dos poucos que vão exaltar a filosofia africana de equidade Ubuntu!: “Juntos somos mais fortes, juntos chegaremos lá, em harmonia”. Esse grupo segue ao encontro de uma solução para o problema deles, e Ray é o guia deles até Mama Odie.

Vamos levar vocês

Mama Odie

Mama Odie é uma feiticeira que vai ajudar os personagens a quebrar o feitiço e fazer o Louis realizar seu sonho de tocar com os humanos. É a típica “preta velha”, já explicitada acima, que vai tentar através de outro número musical de dança, “Cavando mais fundo”, explicar aos personagens para não darem importância às coisas materiais e sim acreditarem neles mesmos. Número de comunidade, tem transparência (apesar dos personagens sapos e o crocodilo não entenderem a mensagem), tem intensidade e energia,e todos participam falando a verdade, é um número berkeleyano (e/ou berkeleyesco, referência a Busby Berkeley) que tem planos zenitais que formam padrões, num número que exalta a filosofia africana.

Cavando mais fundo

No final tem outro número que é a mesma música do início cantada pelo ponto de vista do príncipe recém-chegado a cidade, só que agora pelo ponto de vista de Tiana, a princesa que acredita que os sonhos se realizam naquela cidade onde ela teve que virar sapo, levar o crocodilo para ameaçar os corretores para conseguir seu restaurante. Todos os bonzinhos se dão bem no final dos contos de fadas, isso fica explícito no texto de Azevedo e Silva:


“Como todo conto de fadas também passa uma mensagem: o príncipe — aprende que o dinheiro não é a coisa mais importante para a vida do homem, e que o amor e o carinho de seus amigos e da mulher que se apaixonou valem muito mais; Tiana — percebe o quanto é especial e que tem capacidades para além do que imaginava; Dr. Facilier — morre na reafirmação recorrente dos contos de fada da Disney de que o fim de tudo que é mal é morrer, a morte como um castigo. O fim da animação não traz nenhum argumento inédito, eles se casam e vivem felizes para sempre. Esse “eles” enquadrando apenas o núcleo dos mocinhos, claro!” (AZEVEDO e SILVA, 2014)

A Princesa e o sapo
Referências bibliográficas:

AZEVEDO, Amailton Magno; SILVA, Sheila Alice Gomes. ““Era Uma Vez…”: O Negro No Imaginário Encantado.” Sankofa, vol. 7, n. 14, São Paulo, 2014, p. 8–22.

RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro e o cinema. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2011.

DYER, Richard. “Entertainment and Utopia” In: Hollywood Musicals, The Film Reader. London: Routledge, 2002. (Traduções: Thereza Levenhagen).

SANTANA, Rebecca. “Dez anos depois do Katrina, Nova Orleans é mais branca e mais cara”. 25 de agosto de 2015. Acessado em: 02 de agosto de 2016.


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